Por que “propósito corporativo” vem se tornando tão relevante na administração empresarial moderna? E do que se trata, afinal?
Há dezenas de definições, feitas por acadêmicos, executivos e fundadores de empresas, que podem ser agrupadas em dois balaios.
No primeiro estão conceitos que põem em relevo o caráter social das organizações. Pressupõe que o objetivo final de uma empresa não é somente atrair e atender clientes gerando lucro aos seus acionistas, mas também ter impacto positivo na sociedade, além do de empregar pessoas e pagar impostos.
Exemplos deste enfoque são formulações como “propósito é uma declaração moral de uma empresa sobre suas responsabilidades amplas, não um plano amoral para explorar oportunidades comerciais” (Christopher Bartlett & Sumantra Ghoshal, 1994), ou “algo que é percebido como produtor de benefício social para além do retorno pecuniário compartilhado pelo empregador e os empregados” (Robert Quinn & Anjan Thakor, 2013).
Por isso, muita gente acha que propósito corporativo está intrinsicamente relacionado à filantropia, responsabilidade social empresarial ou preceitos do triple bottom line da sustentabilidade.
No outro balaio, porém, estão conceitos que o definem, em síntese, simplesmente como “a razão de ser das organizações”. Pressupõem que empresas devem ser guiadas pelo “por que” para gerar significado ao seu corpo interno e orientar decisões estratégicas da alta gestão e dos acionistas, evitando armadilhas de destruição de valor futuro inerentes à busca de maximização do lucro, no presente.
Há muitas definições acadêmicas com este entendimento. Mas talvez o melhor e mais recente exemplo se encontra na “Carta aos CEOs 2019”, de Larry Fink, presidente e CEO da BlackRock, a maior empresa de gestão financeira do mundo, com US$ 6,5 trilhões em ativos: “Proposito é a razão fundamental para uma empresa existir e que a faz criar valor todos os dias aos seus stakeholders. Ele não é somente a busca do lucro, mas a força motivadora para alcançá-lo.”
O preceito não é novo. Há mais de duas décadas, numa edição da Harvard Business Review de 1994, Bartlett & Ghoshal publicaram o artigo “Changing the Role of Top Management: Beyond Strategy to Purpose”. Defendiam a mudança da “velha doutrina de estratégia, estrutura e sistemas” para “um modelo mais suave e orgânico, baseado no desenvolvimento de propósitos, processos e pessoas”. Neste modelo, o principal papel da alta gestão vai além de projetar a estratégia corporativa; é o de instaurar um senso comum de propósito.
Se há divergência sobre o que é propósito, há convergência sobre seus principais predicados:
Tamanho conjunto de benefícios só é obtido quando o propósito é genuíno e real, materializado nos produtos e nas atitudes da empresa, como estes conhecidos exemplos:
Quem lê estes enunciados e conhece estas empresas sabe que elas estão entregando a mercadoria. Não são palavras ao vento. São sínteses de propósitos corporativos que modelam os negócios, engajam as equipes, estimulam inovações, entregam valor aos clientes e são reconhecidas por toda cadeia de relacionamento.
Propósitos existem de fato, mesmo que não formalizados, quando um conjunto de crenças mantidas e compartilhadas balizam as ações das empresas. Essas crenças, via de regra, são legados dos fundadores das organizações que foram sedimentados pela percepção de valor dos clientes e demais públicos.
“Por que existimos” e “que diferença podemos fazer no mundo” são as duas perguntas-chave para revelar e formular um propósito corporativo, que só é crível e mobilizador se for reconhecido pelas pessoas – a começar pelo público interno, principal construtor e irradiador dos atributos de uma marca. Para tanto, seu enunciado deve ser simples, claro e tangível.
Um bom exemplo é a fintech Nubank, nascida em 2013 com o propósito de “lutar contra a complexidade para empoderar pessoas”. Simplificou e desonerou diversos serviços financeiros, e sua base de clientes chegou 5,9 milhões, em 2018. Recebeu novos aportes de investidores, superando a marca de US$1 bilhão de avaliação, tornando-se um novo “unicórnio” brasileiro.
As startups demonstram o poder de uma razão de ser centrada em fazer a diferença. Via de regra, nascem determinadas a atender uma demanda latente do mercado, aplicando inovações que simplificam, barateiam, solucionam problemas e/ou melhoram experiências de uso.
Pode-se concluir que o propósito de uma empresa existe quando sua razão de ser é a força motriz da geração valor, sem necessariamente explicitar objetivos sociais. Mas pode-se também prever que a dicotomia entre os dois balaios conceituais tende a desaparecer.
Questões como iniquidade social, aquecimento global, tolerância e colaboração, liberdade de gênero, vida saudável, resíduos e poluição, entre tantas outras, mobilizam a sociedade contemporânea, principalmente as novas gerações. Até mesmo a ascensão de políticos que atacam estas causas ao redor do mundo, inclusive no Brasil, força as empresas a se posicionarem. São temas que influenciam a percepção pública e afetam avaliações pelo mercado. Não há como não se pôr em movimento.
A Walmart é um bom exemplo. Samuel Walton abriu sua primeira loja em 1962 com uma ideia simples de vender mais por menos. Com seu propósito de “economizar o dinheiro das pessoas para que elas possam viver melhor”, tornou-se o maior varejista do mundo. Hoje, são 11.200 lojas em 27 países, empregando mais de 2,2 milhões pessoas e gerando receita de US$ 500,3 bilhões, em 2018.
Com a mudança da percepção sobre o meio ambiente pela sociedade, em 2005 Lee Scott, CEO global na época, entendeu que a empresa não poderia ficar de costas para a questão. Coerente com o credo da empresa, iniciou um programa de redução de desperdício, uso de energia renovável e venda de produtos que “sustentam as pessoas e o meio ambiente”. Desde então, dobrou a eficiência de sua frota de caminhões; converteu quase um terço das fontes de energia que utiliza para renováveis; e recicla ou reutiliza 78% de seus resíduos globais. E, em estrito alinhamento ao seu propósito, implantou um programa regular com scorecards, junto à sua rede de fornecedores, para tornar produtos sustentáveis cada vez mais baratos para os consumidores.
A opção do Walmart demonstra que uma ponte sólida entre propósito corporativo e benefício social é a criação de valor compartilhado. Este conceito foi lançado por Michael Porter e Mark Kramer em 2011, também na Harvard Business Review, e se define como “políticas e práticas operacionais que aumentam a competitividade de uma empresa (…) pela identificação e expansão das conexões entre o progresso social e econômico.”
A brasileira Natura é um exemplo extraordinário e pioneiro da viabilidade do modelo. Para lançar no ano 2000 sua emblemática linha Ekos, que incorpora ativos da biodiversidade brasileira, a empresa pesquisou, selecionou e organizou uma rede de fornecedores em comunidades da região amazônica, para extração sustentável de ingredientes vegetais. Assim, criou novas fontes de renda para pessoas que preservam a floresta em pé e incorporou ao seu portifólio produtos de grande sucesso comercial e que materializam o propósito da marca para seus consumidores. A partir daí, ampliou seus investimentos sustentáveis na Amazônia, incluindo um ecoparque industrial, gerando R$ 1,5 bilhão de negócios nos últimos sete anos.
A relação entre propósito e valor compartilhado ganhou novo e forte impulso em agosto deste ano. O Business Roundtable – instituição que reúne os CEOs das principais empresas americanas, que somam 15 milhões de empregados e US$ 7 trilhões em receita anual – anunciou uma nova “Declaração sobre o Propósito de uma Corporação”, assumindo compromisso em beneficiar todos stakeholders - clientes, funcionários, fornecedores, comunidades – em conjunto com os acionistas. O documento é assinado por 181 líderes de empresas como 3M, Amazon, Apple, Bayer, Boeing, Coca-Cola, Ford, GE e IBM. “Gerar valor a longo prazo a todos stakeholders” é a frase mais comum nas declarações individuais dos signatários.
Reagindo à iniciativa com seu enfoque liberal clássico, a revista The Economist publicou matéria de capa considerando que, “por mais bem-intencionada, essa nova forma de ‘capitalismo coletivo’ acabará fazendo mais mal do que bem” porque compromete a maximização da eficiência, “constituindo-se numa ameaça à prosperidade a longo prazo.” Considera que empresas não têm mandato para buscar soluções estritamente sociais e, ao assumirem esta responsabilidade, também afetarão sua maior virtude: o dinamismo. Corretamente, relembra que grandes corporações tidas como socialmente exemplares já sucumbiram nos negócios por ineficiência e desatualização, gerando danos sociais muito mais extensos.
Em essência, esta abordagem foi consagrada por Milton Friedman, no antológico artigo “The Social Responsibility of Business Is to Increase Its Profits”, publicado em 1970, na New York Times Magazine. Quase 50 anos depois, os economistas Oliver Hart (Nobel em 2016) e Luigi Zingales publicaram “Companies Should Maximize Shareholder Welfare Not Market Value”, no Journal of Law, Finance, and Accounting, em 2017. Sem se contrapor a Friedman, propõem que seu conceito de shareholder value focado na maximização de lucro evolua para shareholder welfare, pressupondo que muitos acionistas das companhias não desejam mais retorno financeiro a qualquer preço e sim em conformidade com uma ética ambiental e/ou social.
Fato é que a legitimidade do mundo dos negócios está na alça de mira da sociedade. A economia de mercado gera riqueza, prosperidade e inovação; aumenta a produtividade, reduz preços e amplia o acesso e a diversidade de produtos e serviços. Mas sofre questionamentos crescentes pelo aumento da concentração de renda, da desigualdade social e do risco de colapso ambiental, questões tão graves quanto inegáveis.
Não é demais lembrar que os indivíduos estão agora capacitados a exercer pressão local e global sobre as organizações como nunca antes na história, dispondo de um arsenal de meios de informação, expressão e articulação.
Por tudo isso, vivemos hoje uma profusão de conceitos, iniciativas e novos modelos que buscam reduzir as externalidades e ampliar os benefícios e os beneficiários da atividade empresarial: Economia Circular, Economia Colaborativa, Capitalismo Consciente, Empresas Regenerativas, entre outros exemplos.
Num front avançado estão as Empresas B, reconhecidas por um processo de certificação independente que avalia o impacto socioambiental, tanto na cadeia, como no modelo de negócio, como a Patagônia e a Danone, nos EUA, e a própria Natura e a Mãe Terra, no Brasil. E no extremo desse movimento estão ainda as Empresas de Impacto Social, que já nascem para gerar lucro, dando soluções escaláveis para problemas sociais específicos.
É revelador que a editoria de Negócios da própria The Economist aborde sistematicamente a eclosão de novas formas de capitalismo e o impacto das mudanças climáticas no mercado. São seus principais eixos de cobertura na seção, além da volta da interferência da geopolítica nos negócios.
Resumo final da ópera: propósito corporativo não é slogan, nem filantropia, e sim uma síntese da crença fundamental de uma organização, que declara por que existe e que diferença quer fazer no mundo. Constrói cultura, define estratégias e inovações, se desdobra em processos; deve ser reconhecido pelo corpo interno e muito tangível para seus clientes.
Explicitando ou não intenções sociais, o propósito inevitavelmente definirá a forma como a organização compartilhará valor crescente, em diferentes graus, com toda sua cadeia de relações, porque este é o novo normal do capitalismo.