Por que a reforma tributária pode provocar um colapso econômico na área cultural? Por que as leis de incentivo são o principal assunto da agenda do Ministério da Cultura? Aliás, por que o Ministério da Cultura é, na verdade, o “Ministério das Leis de Incentivo”? Por que, afinal, no Brasil, e somente no Brasil, a cultura é afetada tão diretamente por questões fiscais?
Porque no Brasil, e somente no Brasil, a dedução fiscal é o principal mecanismo de financiamento público à cultura. Desvirtuadas da função de estímulo suplementar do patrocínio empresarial às artes, as leis de incentivo tornaram-se uma forma insensata de financiamento do Estado.
Os governos têm a responsabilidade de estabelecer objetivos e elaborar estratégias para sua ação nos processos de pesquisa, criação, produção, circulação, intercâmbio e preservação dos diversos segmentos artísticos, e garantir a todos os extratos da população e a todas as regiões do país amplas condições de fruição e expressão cultural. Estas políticas devem orientar o investimento do dinheiro público suficientemente previsto nos orçamentos dos municípios, dos estados e da federação. Mas nada disto acontece. Salvo exceções, raras e pontuais, não há diretrizes. E os minguados recursos alocados sequer cobrem os gastos de manutenção dos próprios aparelhos culturais do Estado.
O dinheiro público que movimenta nossa produção cultural percorre o tortuoso caminho do incentivo fiscal por meio da dedução de impostos federais, estaduais e municipais, e sua distribuição obedece à lógica e ao interesse empresarial. Não há nada de errado nisto, quando o dinheiro é, de fato, privado. A associação das marcas a projetos culturais é uma poderosa estratégia para atingir objetivos corporativos e mercadológicos, o que motiva as empresas em todo mundo, inclusive no Brasil, a investir parte de seus orçamentos de comunicação em patrocínio.
Mas as leis de incentivos fiscais permitem a dedução integral do imposto a pagar, tornando a empresa, neste caso, mera repassadora dos recursos do Estado, despendidos sem atender objetivos coletivos e parcialmente consumidos por um sistema de intermediação que envolve aprovadores, captadores, auditores, entre outras atividades úteis e dignas no regime do mercado, mas não necessárias para o investimento público.
Se grande parte dos recursos de projetos com incentivo fiscal é 100% do Estado (125% na famigerada Lei do Audiovisual!), por que pulverizá-los e transferí-los aleatoriamente para o caixa das empresas, obrigando o meio cultural a peregrinar em território privado à cata do dinheiro público? Esta pergunta óbvia não é formulada pela maioria dos produtores, promotores, artistas, ministros, secretários, deputados, senadores e jornalistas. Como que possuídos por um encantamento, nada enxergam além das leis de incentivo, limitando o debate à busca de fórmulas mágicas para “corrigir suas distorções”, “ampliar sua abrangência”, “beneficiar regiões carentes”, “democratizar o acesso”, “eliminar a intermediação”, “fazer o controle social”.
Não se resolvem problemas estruturais com ações cosméticas. É impossível atender à diversidade e à extensão das demandas culturais da sociedade com um sistema baseado em incentivo fiscal. Enquanto este paradigma não for quebrado, tudo continuará como está. Se a premissa para a política cultural fosse o investimento direto, a agenda seria outra. A discussão estaria centrada na constituição de fundos de financiamento, nas garantias de sua sustentabilidade orçamentária, nos critérios técnicos de avaliação de projetos, nos mecanismos independentes de seleção, no planejamento da transição sem sobressaltos.
E por que o meio cultural não se mobiliza para instaurar a transferência dos recursos públicos despendidos na dedução de impostos para fundos de financiamento municipais, estaduais e federais, ação que não afetaria o equilíbrio fiscal? Uma parte, por mero desconhecimento desta possibilidade. Outra parte, por temer que o dinheiro seja gasto pelo próprio governo, tragado na sua insolvente infra-estrutura cultural ou distribuído aos seus apaniguados políticos. E uma minoria, com amplo acesso à mídia e ao poder, porque urdiu o sistema em vigor sob medida a seus interesses pecuniários.
Ao contrário do que apregoam estes donatários da verba estatal que amedrontam os incautos com o velho fantasma do dirigismo, é possível, sim, estruturar um sistema de investimento cultural eficiente, plural, democrático, transparente, regido pelo mérito e pelo interesse público. Não faltam modelos em funcionamento em diversos países, não só do “primeiro mundo”. E mesmo no Brasil, é possível se espelhar nos mecanismos de financiamento da área científica, como a FAPESP.
Quanto ao patrocínio das empresas, o fim do anabolizante fiscal revelaria sua verdadeira dimensão econômica. Livre de um cipoal de normas e de seus parasitas, deixaria de ser matéria tributária para tornar-se exclusivamente ação estratégica. Cresceria estimulado pela necessidade de gerar resultado, irrigando a cultura com recursos privados reais, como ocorre nas áreas ambiental, social e esportiva, que não sucumbiram, ainda, ao perverso encanto das leis de incentivo e desenvolveram formas concretas de sustentabilidade.