O Ministério da Cultura de Gilberto Gil está celebrando os resultados da captação de recursos pela Lei Rouanet. Considera um êxito o mecanismo ter movimentado R$ 466 milhões em 2004, cifra 10% superior ao ano anterior. A postura é mais uma evidência de que o governo Lula optou por consagrar a dedução fiscal privada como sistema de financiamento público à cultura no Brasil.
Aplicado ao imposto de renda, o modelo foi criado pela Lei Sarney, em 1986, substituída pela Lei Rouanet por Collor, em 1991, ampliado com a Lei do Audiovisual por Itamar, em 1993, e replicado por municípios e estados via dedução no ISS, IPTU e ICMS.
Em conjunto, as leis de incentivo injetam cerca de R$ 600 milhões por ano na área cultural. Estes recursos públicos transformam-se em filmes, espetáculos, shows e livros; mantêm museus, bibliotecas e centros de arte; recuperam patrimônios artísticos e históricos. Por isto, muitos profissionais da cultura e da mídia consideram as leis positivas. Mas, uma análise mais acurada revela que o mecanismo é deficiente. Gera produção cultural porque distribui dinheiro, não por ser lógico e justo.
Leis de incentivo com dedução integral nada têm a ver com patrocínio ou investimento privado de verdade. São uma forma prática de transferir recursos para a cultura, sem enfrentar disputas no orçamento público, nem a burocracia do Estado. Em outros países, incentivo fiscal é poder lançar contribuições feitas para instituições culturais como despesa na declaração de renda. Caso contrário, incidiria imposto sobre o valor doado, por exemplo, a um museu. No Brasil, desde a Lei Sarney, além do desconto como despesa, parte do valor pode ser deduzido do imposto a pagar, o que gera aplicação privada de um recurso público. De toda forma, a parte não dedutível representa uma contrapartida, preservando o princípio do incentivo fiscal: usar dinheiro público para estimular o investimento privado.
A Lei do Audiovisual subverteu este conceito. Autorizou que a aquisição de cotas de comercialização de filmes fosse deduzida integralmente do imposto a pagar e ainda abatida como despesa, reduzindo o imposto acima do valor aplicado. Em conjunto, estas operações resultam num ganho mínimo de 124%. Isto significa que uma empresa pode utilizar dinheiro 100% público para se tornar sócia de uma operação comercial e receber mais 24% de comissão.
Espectadores-cidadãos não se dão conta que as marcas que aparecem na abertura dos filmes brasileiros são de empresas que recebem dinheiro público para fingir que são investidores culturais, tendo ainda o poder de decidir que aquele filme, e não outro, deveria ser produzido. Este instrumento sem precedentes que financia a retomada do cinema nacional contaminou outras leis de incentivo fiscal, a começar pela Lei Rouanet que, desde 1997, oferece 100% de dedução a diversos tipos de projetos.
O problema não está no uso em si de recursos do erário, pois a cultura requer políticas e investimentos do Estado por ser uma questão de interesse público, como a saúde, a educação, o transporte e a segurança. O problema está na forma que o investimento é feito. Leis de incentivo sem contrapartida não são um meio eficaz de financiamento público, nem de estímulo ao patrocínio privado. Desperdiçam recursos com sobrededuções e intermediações; não formam patrocinadores-investidores reais, pois são um jogo de faz-de-conta-que-o-dinheiro-é-privado; pervertem a relação cultura-empresas/pessoas, doutrinando-as a não pôr a mão nos próprios caixas/bolsos para patrocinar/apoiar/investir; desconsideram o interesse público, pois financiam projetos, com dinheiro exclusivamente do Estado, pelo mérito de atenderem o interesse privado.
A solução não está em ampliar normas, condições e restrições ao patrocínio empresarial. Basta restabelecer a contrapartida financeira. Usando seus próprios recursos, as empresas devem ter liberdade para apoiar o que lhes for mais adequado. Como já fazem com projetos esportivos, sociais e ambientais, que não dispõem de incentivos fiscais, e os projetos culturais sem dedução integral. Nestas áreas onde o patrocínio é real, as empresas investem para estimular a identificação e melhorar o relacionamento com seus públicos; ampliar sua credibilidade; agregar atributos e valorizar suas marcas; demonstrar sua participação social.
Instituições, processos e projetos culturais não nascem, nem existem, para serem canais de divulgação de marcas. Alguns desempenham bem essa função e têm maior chance de obter patrocínio real. Em regra, são atividades artísticas de repercussão midiática. As demais instituições, processos e projetos não perdem sentido cultural só porque não atendem objetivos de comunicação das empresas. Sem acesso a patrocínios, seus recursos devem vir do próprio público, quando puderem se inserir no mercado, e de fundos de financiamento institucional e do Estado, quando o provento do mercado não for suficiente para o equilíbrio econômico de ações culturais relevantes à sociedade.
A diversidade cultural depende desta multiplicidade de fontes. Por isto, são necessárias linhas de financiamento baseadas em políticas culturais públicas, que estabeleçam prioridades nos processos de pesquisa, criação, produção, circulação, intercâmbio e preservação para os diversos segmentos artísticos, e nos meios de fruição e expressão cultural da comunidade, nas diversas regiões do país. Havendo estes preceitos, comissões independentes formadas por especialistas podem avaliar o mérito técnico e público dos projetos, estabelecendo uma relação direta entre financiamento público e benefício público, e permitindo transferir os recursos sem descaminhos e intermediações.
Enquanto o governo não assume esta responsabilidade, algumas empresas adotam premissas públicas ao usar leis de incentivo, implementando programas que eqüivalem a políticas culturais, com inscrição aberta e seleção técnica. No mundo, fundos públicos fomentam as artes, a educação, a ciência, a saúde, entre outros processos de benefício coletivo. No Brasil, experiências no campo acadêmico, como a Fapesp, no institucional, como a Vitae, e no cultural, como o FumproArte, que opera há dez anos em Porto Alegre, o Promic, de Londrina, e o Programa Municipal de Fomento ao Teatro, de São Paulo, demonstram ser possível financiar projetos e instituições independentes com baixos riscos de malversação, clientelismo, corrupção e dirigismo.
Não faltam modelos para melhorar a qualidade do investimento público na cultura do país. Mas o Ministério de Gilberto Gil desistiu desta empreitada. No início de seu mandato, possuía recursos políticos, humanos e técnicos para promover a substituição gradual das deduções fiscais integrais por fundos de financiamento, sem colocar em risco os projetos culturais em curso. Mas sem plano estratégico e de ação, sucumbiu aos grupos que se sentem em vantagem no sistema atual. Embrenhou-se num cipoal de pressões e nem mesmo consegue implantar as mudanças que pretende fazer para manter tudo como está, que há mais de um ano anuncia e adia, anuncia e novamente adia. Restou-lhe comemorar os falsos êxitos que herdou.