Poucos duvidam que os princípios ESG tenham vindo para ficar. O que se discute é como devem expandir-se e aprimorar-se
A sigla inglesa ESG sintetiza três preceitos que as empresas precisam seguir para dar sustentabilidade aos seus negócios: mitigar o impacto negativo e, preferencialmente, gerar impacto positivo no meio ambiente; atuar de forma socialmente responsável e positiva; ter um sistema de gestão transparente e que opere em consonância com todas as partes interessadas. Em suma, ter resultado e perspectiva de perenidade trabalhando para o bem comum, o que presumiria resguardar a cidadania.
O que difere os princípios ESG das fases anteriores de transformação do capitalismo – que evolui da filantropia empresarial para o Investimento Social Privado – estrutura-se na responsabilidade social empresarial e deságua no imperativo da sustentabilidade – é o jogo ser jogado no tabuleiro do mercado financeiro. Segundo a Global Sustainable Investment Alliance, os ativos ESG movimentaram US$ 35,3 trilhões em 2020. A Bloomberg estima que a cifra atingirá US$ 50 trilhões em 2025.
O escrutínio dos analistas financeiros racionaliza e aprofunda a avaliação da performance sustentável das empresas. A súbita valorização dos serviços especializados em rating ESG, demandados por investidores e reguladores, demonstra que o processo de aferição será crescente. Não haverá espaço para o green/socialwashing.
É certo que ainda há um acentuado gap de efetividade entre o avanço da agenda ESG nas empresas e as reais melhorias do mundo. A pobreza extrema voltou a aumentar, pela primeira vez em 20 anos, segundo o Banco Mundial. Entre 9,1% e 9,4% da população global vivem com menos de US$ 1,90 por dia. Há 160 milhões de vítimas do trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho. E o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) da Organização das Nações Unidas, lançado em agosto de 2021, revela que nós, humanos, elevamos a temperatura média global em 1,1 grau, pela emissão de gases de efeito estufa, provocando fenômenos meteorológicos extremos que se acelerarão.
Por sua vez, a emergência climática está construindo a economia de baixo carbono, impulsionando investimentos e créditos ESG para as empresas que já inseriram a sustentabilidade no centro da estratégia do negócio e para aquelas, que formam a grande maioria, que querem ou precisam migrar para o novo modelo. O financiamento desse processo amplia a exigência de métricas, metas e aferições.
A prestação de contas das atitudes empresariais positivas ocorre há mais de três décadas, começando pela publicação voluntária e desregrada de balanços de responsabilidade social. Naquela época, poucas empresas se empenhavam em atuar e relatar de forma consistente, enquanto muitas “marqueteavam” até doações para asilos. No Brasil, a criação dos Indicadores Ethos de Responsabilidade Social Empresarial, em 2000, foi o divisor de águas para a seriedade. No mesmo ano, era lançada a primeira versão do GRI Guidelines, pela Global Reporting Initiative, que evoluiu, em 2016, para os GRI Standards, primeiro padrão global para relatórios de sustentabilidade.
Agora, surgem as metas baseadas na ciência e a integração dos relatórios de sustentabilidade aos balanços financeiros anuais, ampliando o rigor analítico e a pressão para migração das empresas para uma economia de baixo carbono e mais inclusiva. Já há quem diga que o planeta será salvo pelos contadores.
A análise do histórico dos indicadores ESG revela a evolução das melhorias do mundo que se considera ao alcance das empresas. A lista, hoje, é extensa e abarca os mais diversos tópicos ambientais, sociais e de gestão. Por isso, chama atenção que uma das questões mais relevantes para a sociedade e para os negócios não esteja explicitamente contemplada: a defesa da democracia.
O Estado Democrático de Direito é uma conquista estruturante para a sociedade. O direito a votar em eleições livres, idôneas e regulares; a liberdade de expressão e de organização política; o respeito às minorias e o império da lei, entre outros fundamentos, são propulsores do desenvolvimento humano. Os países democráticos são mais desenvolvidos, instruídos, saudáveis, equânimes e ricos. A liberdade e a igualdade de direitos e deveres também formam a base da economia de mercado. Toda empresa e toda liderança empresarial deveriam zelar por isso.
Apesar de seus incontestáveis préstimos à civilização, a democracia está sob ataque. A última edição do The Economist Intelligence Unit’s Democracy Index revela que ela se manteve em declínio no planeta, em 2020. A pesquisa avalia 167 países, com base em cinco medidas – processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política democrática e liberdades civis –, e constata que apenas 8,4% da população mundial vivem em democracia plena, enquanto mais de um terço se submete a regimes autoritários. A pontuação média global de 5,37, numa escala até 10, é a mais baixa registrada desde o início do índice, em 2006. O Brasil está na 49ª posição, com 6,92 pontos, acima da média global, mas abaixo dos 7,38 pontos que detinha em 2014 e 2008.
O declínio da democracia é reiterado pela Freedom House, a mais antiga organização americana dedicada a seu apoio e defesa no mundo. Nascida em 1941, a instituição adota desde 1973 métodos de análise das ciências sociais para avaliar o nível de liberdade em cada país. Seu relatório de 2020 mostra o declínio da liberdade global pelo 15º ano consecutivo. E os países em deterioração superaram os que apresentam melhorias pela maior margem registrada desde o início da tendência negativa, em 2006.
A longa recessão democrática está se aprofundando. Como as empresas e as lideranças empresariais podem estar alheias a este fato?
Nos EUA, o ameaçador populismo de extrema-direita de Donald Trump provocou iniciativas como o Leadership Now Project, coalizão de líderes empresariais que age para a proteção e a renovação da democracia americana. A rede nasceu, em 2017, por iniciativa de ex-alunos da Harvard Business School. Ela tem, no seu Conselho Acadêmico, veteranos como Michael Porter e novos pensadores como Rebecca Henderson, autora do livro Reimagining Capitalism in a World on Fire.
No Brasil, Jair Bolsonaro – a versão tupiniquim de Donald Trump – age abertamente para aplicar um autogolpe que não se consumou, até agora, não por falta de empenho, mas por falta de competência do golpista; bem como pela forte resistência da imprensa, do Judiciário e por parte do Legislativo. O meio empresarial que, salvo poucas e honrosas exceções, mantinha-se omisso, finalmente despertou da letargia quando um grupo amplo e expressivo de lideranças publicou, em agosto de 2021, o manifesto As Eleições Serão Respeitadas, em apoio ao sistema eleitoral brasileiro, sistematicamente atacado por Bolsonaro, como parte de sua trama.
O Estado Democrático de Direito é a base do capitalismo de livre mercado, pela estreita relação com a economia e os negócios. O respeito às leis e a desconcentração do poder tornam a economia mais dinâmica e próspera para gerar oportunidades de melhoria de vida das pessoas. Os efeitos se refletem transversalmente em diversos itens da agenda da sustentabilidade e, principalmente, alinham-se à sua ética.
Estamos empenhados na transição do “capitalismo do acionista” para o “capitalismo das partes interessadas” (stakeholder capitalism), formulação elaborada por Klaus Schwab, criador do Fórum Econômico Mundial (WEF, em inglês), que vem sendo sistematizada nas suas edições recentes. Conceitualmente, esse princípio induz as empresas a ocuparem posição nas trincheiras de defesa da cidadania.
Por tudo isso, a proteção do Estado Democrático de Direito deve incorporar-se à responsabilidade empresarial, passando a ser formulada especificamente e introduzida nas matrizes de critérios ESG.
Nos sistemas vigentes, o conceito só consta explicitamente nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, no Objetivo 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes), nos itens: 16.3 (“Promover o Estado de Direito, em âmbitos nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos”); 16.7 (“Garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis”); e 16.10 (“Assegurar o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais, em conformidade com a legislação nacional e os acordos internacionais”).
Nos GRI Standards, a questão é tangenciada nas normas 412 (Avaliação de Direitos Humanos); 413 (Comunidades Locais); e 415 (Políticas Públicas). No sistema de avaliação de impacto para certificação de Empresas B, está parcialmente relacionada com a norma Comunidade: Engajamento Cívico & Doações. Mesmo as recém-lançadas Métricas do Capitalismo das Partes Interessadas (Stakeholder Capitalism Metrics), pelo International Business Council do WEF, abordam direitos de cidadania de forma indireta e parcial, no item Vitalidade Comunitária e Social de seu “Pilar 4: Prosperidade”.
A ameaça trumpista à democracia americana acabou estimulando o ativismo empresarial. A Microsoft declarou-se contrária à legislação de votação restritiva estabelecida na Geórgia; HP, Unilever, Patagonia e Salesforce pediram a expansão do acesso ao voto no Texas; Airbnb, PepsiCo, Ikea, entre outras, assinaram uma carta de apoio à legislação federal de direitos de voto; Dow, Toyota, Mastercard, AT&T, Deloitte, Morgan Stanley, Amazon e Walmart, entre mais de uma centena de empresas, pararam de financiar deputados e senadores republicanos que votaram contra a certificação da eleição de 2020.
Esses são exemplos de ações que podem inspirar a elaboração de normas a serem incorporadas aos padrões de relatórios e certificações para sustentabilidade. A regulação estimularia e orientaria as empresas a atuarem como guardiãs do Estado Democrático de Direito.
Empresas são poderosos agentes de transformação da sociedade, e os princípios ESG estabelecem uma base ética que direciona os negócios para um mundo melhor. A defesa da democracia não pode ficar fora disso.