Foi necessária uma horda extremista atacar o Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, para as empresas norte-americanas manifestarem-se a favor da democracia. Estimulada por Donald Trump, a ameaça sem precedentes às instituições políticas, no país de referência da democracia ocidental, fez a chamada Corporate America desembarcar de vez da nau insensata e golpista do então presidente.
O líder populista já vinha perdendo parte do apoio do mercado por ignorar a crise climática, não condenar o racismo e negar a gravidade da pandemia provocada pela Covid-19. Mas a ruptura só ocorreu depois que ele incitou uma multidão furiosa, que abrigava maníacos armados, a profanar o Capitólio e provocar mortes.
O Business Roundtable criticou os políticos republicanos por espalharem a “ficção de uma eleição fraudulenta”. A associação que reúne os CEOs das principais empresas americanas havia aplaudido Trump na sua posse, por seus planos fiscais e pela nomeação de Steven Mnuchin, Ex-Goldman Sachs, como secretário do Tesouro.
Após a invasão, empresas de tecnologia ampliaram restrições às mídias sociais e aos serviços do site do então presidente; corporações financeiras e industriais suspenderam doações políticas, particularmente, a deputados e senadores republicanos que endossaram a falsa narrativa de fraude das eleições de 2020.
Críticos alegam que as empresas demoraram muito a reagir. Atraídas pelas promessas de cortes de impostos, desregulamentação e restrições a concorrentes estrangeiros, especialmente a China, o mundo corporativo, com destaque para o mercado financeiro, aliou-se a Trump durante a maior parte de seu mandato e ainda apostou na sua reeleição.
Contudo havia quem percebesse que o que é bom para os negócios não pode ser ruim para a democracia, como as lideranças empresariais que integram o Leadership Now Project, uma coalizão que age na proteção e renovação da democracia americana e que nasceu em 2017, por iniciativa de ex-alunos da Harvard Business School. Ela tem, no seu Conselho Acadêmico, veteranos como Michael Porter e novos pensadores como Rebecca Henderson, autora do livro Reimagining Capitalism in a World on Fire.
E, no Brasil?
Desde 2019, somos liderados pelo mais inepto e inapto presidente da nossa história. Guiado por princípios primitivos, Jair Bolsonaro nunca escondeu sua aversão a tudo que representa evolução civilizatória.
Passados dois anos de mandato, ele comprova que seu foco é a destruição. Corroeu nossas relações internacionais e multilaterais; desmontou nossos mecanismos de proteção ao meio ambiente; paralisou a estrutura federal de educação; desqualificou as instituições de cultura e arte; destituiu a sociedade civil de conselhos de políticas públicas; colapsou o sistema de saúde em meio a uma brutal pandemia; incentivou e participou de manifestações golpistas.
Enquanto a mídia, o Judiciário e parte do Legislativo enfrentaram Bolsonaro para reduzir suas ações danosas e impedir a progressão de golpes, o que fez nosso segmento empresarial?
Boa parte continuou a acreditar que a agenda liberal de Paulo Guedes domaria o dinossauro nacionalista-estatizante, um aliado incondicional do corporativismo que, em 27 anos de atividade parlamentar obscura, alinhou-se ao PT em 60% das votações sobre questões econômicas importantes.
Tal qual ocorrera em relação a Trump, nos EUA, grande número de empresários, no Brasil, desconsiderou o custo e o risco Bolsonaro e comemorou sua eleição por ver interrompido o projeto de poder hegemônico e anacrônico do PT.
Vale observar que as eleições de 2018 foram antecedidas por saudáveis manifestações de ativismo empresarial. Acionistas e executivos sem envolvimento partidário ajudaram a fundar organizações voltadas à boa formação política e ao engajamento de cidadãos em questões públicas, como o pioneiro Raps, sucedido pelo RenovaBR, Agora! e Acredito. Também, promoveram fóruns suprapartidários de discussão política, como o “Você Muda o Brasil”.
Porém, a partir daí, nos momentos mais críticos deste período de trevas da história brasileira, grande parte do meio empresarial vacilou entre a timidez e a omissão, enquanto o restante manteve a aposta no descalabro.
Aqueles que acreditam que liberalismo pode coexistir com extremismo reacionário e apoiaram a candidatura de Bolsonaro chegaram a lançar um instituto sob o lema “conservador nos costumes, liberal nos negócios”. Outro grupo de empresários atravessou com ele a Praça dos Três Poderes, no pico inicial da pandemia, rumo ao Supremo Tribunal Federal, para pressionar contra medidas sanitárias de combate ao coronavírus implantadas por estados e municípios.
Quando as manifestações de ruptura institucional do presidente, de seus filhos e aliados intensificaram-se, em meados de 2020, surgiram novos movimentos democráticos na sociedade civil, nenhum por iniciativa empresarial. O primeiro deles, de forte repercussão, denominado “Estamos Juntos”, reuniu artistas como Caetano Veloso e Marieta Severo, políticos como Fernando Henrique Cardoso e Fernando Haddad, juristas como Miguel Reale Jr. e Oscar Vilhena, e economistas como Armínio Fraga e Pérsio Arida. Foi assinado, no lançamento, por dois mil cidadãos. Somente trinta eram empresários.
Raro encontrar líderes empresariais que defendam abertamente a democracia, como fez Pedro Passos, da Natura, em reportagem no “Valor”, de 9 de outubro de 2020. “As instituições democráticas estão sob constante ataque. O governo atual dá claras indicações de que não valoriza os princípios democráticos. Em alguns momentos, questiona o próprio Estado de Direito”, disse Passos. Além dele, Horácio Lafer Piva, da Klabin, e Pedro Wongtschowski, do Grupo Ultra, estão entre as poucas vozes do segmento que ecoam na proteção do regime democrático.
Entretanto o silêncio mais significativo não é individual, e sim coletivo. É gritante a falta de posicionamento das entidades empresariais, em grande parte cooptada por líderes que se eternizam no poder e ocupados com a defesa de privilégios setoriais que ancoram nossa economia no passado.
Dois dias depois da profanação do Capitólio, Rebecca Henderson publicou, na Harvard Business Review, o artigo-manifesto Business Can’t Take Democracy for Granted. Advertindo que “os negócios não podem dar a democracia por garantida”, Rebecca defende que seu fortalecimento é o único meio de assegurar a sobrevivência do capitalismo de livre mercado. Ela demonstra a estreita relação entre democracia, economia e negócios para alertar que as empresas devem zelar pelo regime democrático para manter os mercados genuinamente livres e justos.
Empresas são agentes relevantes da estrutura social e não podem mais se isentar das questões de alto interesse público. Passados 50 anos, a doutrina de Milton Friedman, de que a função social das empresas é somente maximizar lucro para seus acionistas, está sendo hoje revista no seu próprio nascedouro, na Universidade de Chicago. Caminhamos inexoravelmente para um capitalismo de stakeholders e a sustentabilidade finalmente penetra no mainstream empresarial, pela crescente influência dos critérios ESG nas decisões de investimento.
Preceitos da sustentabilidade, porém, só podem existir e expandir-se em regimes democráticos. Os governos populistas de direita e de esquerda que infestam o mundo demonstram aversão à agenda ambiental, à evolução social e aos fundamentos de governança.
É preciso reconhecer que muitas empresas e empresários brasileiros têm-se articulado e agido na defesa do meio ambiente, da saúde e da educação, em contraposição ao desgoverno federal. Alianças como a Coalizão Brasil e a Concertação pela Amazônia, e entidades como o CEBDS e o Todos Pela Educação são alguns exemplos dessas atitudes propositivas.
No entanto, em um momento em que o Estado Democrático de Direito, a maior conquista da nossa sociedade, é reiteradamente ameaçado, cabe priorizar sua defesa e proteção. Para isto, as lideranças empresariais não precisam fazer proselitismo ideológico ou ter engajamento partidário. Basta assumir ostensivamente sua parcela de responsabilidade individual e coletiva na defesa aberta dos fundamentos da cidadania.